Cordón del Plata: a meca do montanhismo argentino

A primeira coisa que chama atenção é o calor infernal. É uma manhã particularmente sufocante em Mendoza. Há dois dias saí da úmida cidade de Joinville, em Santa Catarina, com chuva borrifando no para-brisa do ônibus. Frio e desconforto debaixo do ar-condicionado. E agora aqui, em pleno sol e ar seco da cidade Argentina.
 
É quase meio-dia de uma quarta-feira escaldante de janeiro quando o motorista anuncia a chegada na Estación Terminal de Ómnibus. Finalmente! Foram aproximadamente dois mil e seiscentos quilômetros desde que saí do Brasil. Uma viagem em que o tempo repousava às margens da minha imaginação que fantasiava cenários desconhecidos.
 
Já no portal de desembarque defronto com outra novidade na atmosfera mendocina: o cheiro cosmopolita. Posso sentir o cheiro nômade que emana dos italianos, estadunidenses, alemães, colombianos e peruanos. O cheiro desse ambiente, porém, é um tanto diferente. Posso sentir a textura cultural, isto é, a identidade de cada viajante. É cheiro de suor, de aventura e de aromas que florescem de nativos e forasteiros. Esse cheiro me conscientiza que sou apenas um, entre tantos outros peregrinos de passagem pelas estações do mundo.
 
E finalmente, a descoberta mais esperada, as montanhas. A Cordilheira dos Andes. Como ela combina com esta paisagem, com esta cidade, com esses cheiros! Como se homem e montanha fossem uma unidade só, indissolúveis. No meio destes picos nevados de rochas e gelo o homem também é um intruso, sedento por alguns minutos de prazer no topo das colinas. Entretanto, essa sede o faz mover com naturalidade e resistência. Segue num ritmo determinado pela paixão. Um ritmo sem pressa, pois não se é possível conseguir tudo na vida.
 
Vim para Mendoza por um motivo especial. Aprendi que ter uma meta é algo positivo, pois a pessoa se dirige para aquele objetivo até alcançá-lo. Entretanto, penetrar num país desconhecido pode trazer muitas surpresas – boas e ruins. Estou aqui na condição de jornalista de aventura e para conhecer o Parque Provincial Cordón del Plata, na região de Vallecitos. Um destino que espero (im) paciente há meses. A região é cercada por uma vasta cadeia de montanhas, que traz no cardápio picos de 3.500 a 5.900 metros de altitude.
 
Mendoza está situada aos pés da Cordilheira dos Andes e se destaca como importante região produtora de vinho e azeitona. A cidade também é repleta de espaços arborizados, onde as pessoas passam o dia caminhando ou sentadas à sombra das árvores. Canais hidráulicos ladeados de álamos formam artérias que cruzam a cidade, permitindo a irrigação e o cultivo, especialmente da uva.
 
A viagem até aqui foi uma excursão por um reino interminável de estrada.  Os incômodos durante toda noite – pois saí de Buenos Aires antes do entardecer do dia anterior – me deixou esgotado. É verão e eu estou há dois dias sem tomar banho. O suor acumulado durante esse período me deixou com cheiro de suor velho e azedo. Estou completamente coberto por uma armadura de sujeira.
 
Sento-me para descansar, bebo o resto da água que sobrou em minha garrafa e assisto a movimentação de pessoas na estação de ônibus. Procuro o que escrever em meu caderno de anotações. Olho em volta, surgem as primeiras ideias: “Estou em Mendoza e observo os prédios. Eles são altos,estão pintados de branco. Árvores gigantes largam folhas pelo chão. O vento as levam para longe…” Enquanto escrevo, levo as mãos ao nariz. Cheiram a transpiração. Distraio-me com o barulho vindo do lado de fora.  Nada mais sai, estou sem inspiração. Deve ser a ligeira fome.
 
Paro por um instante, inclino a cabeça e reparo uma senhora de meia-idade que senta ao meu lado. Ela abre um lenço onde guarda um pão velho e alguns pedaços de mortadela. Dá para sentir o odor do trapo em que embrulha o alimento. Come um pouco e permanece sentada, até o instante em que alguém aparece às suas costas. Ela levanta num sobressalto ao constatar a criatura atrás dela. “Holaaaa!”, falou a criatura. A senhora gira a cabeça em sentido anti-horário, o bastante para verificar que se trata de alguém familiar. Irmã? Sei lá. Imagino. Elas se cumprimentam, eu só observo. Não dá para compreender o que dizem – não sou de ouvir conversa alheia, mas fiquei interessado em saber quem são elas. Pura curiosidade. Elas se afastam, parecem querer ir embora. A senhora segura a única mala que carrega, ergue com determinação e segue pelo corredor da estação. Em poucos minutos, ela e a criatura se misturam a multidão.
 
Eu ainda não me decidi entre as duas opções possíveis de locomoção: ônibus ou táxi? A princípio, penso em ir de ônibus, mas o desconhecimento da região me faz desistir do propósito. Mesmo que soubesse o trajeto, encarar a difícil tarefa de dividir o apertado espaço de um coletivo seria um desastre nas condições em que me encontro. Se não sabem, carrego cerca de 25 quilos de equipamentos para montanhismo.
 
Ir de táxi parece ser mais simples. Basta acenar com a mão para que um deles se aproxime. Aqui esses veículos são pretos e as portas são pintadas de amarelo. Também existe o “remis”. Diferentemente do táxi tradicional, o remis não têm marcação e se assemelham a um carro particular. Um número pintado de amarelo e uma antena no porta-malas é a maneira de identificá-los.
 
Nessa indecisão, vacilando entre uma opção e outra, passa meia hora. Logo passa uma hora, uma hora e quinze minutos… Um momento, um táxi se aproxima. Aceno! O motorista desce o vidro, me cumprimenta e pergunta: “A dónde vás?”. Me curvo para vê-lo melhor através da janela. “Hotel Íbis”, respondo. “Guaymallen?”, pergunta. “Sí, Guaymallen!”, repito triunfante. Ele, sem mais nada dizer, abre a porta e eu entro.
 
Sento-me ao lado do motorista. Minha bagagem fica no porta-malas. Saímos em silêncio. Claro, tento puxar assunto: “Qué tan caliente está aquí, no? Faz quase quarenta graus no início da tarde! “Sí, infernal…”, disse, e com isso a conversa acabou mesmo antes de ter começado. Seguimos adiante.
 
Em menos de 15 minutos chegamos nas proximidades do hotel, próximo a uma rodovia movimentada de Mendoza, a MRN7. O taxista conduz o carro até a entrada do prédio. Uma sensação de alívio, pois estou com fome e cansado. Vejo o taxímetro: 26 pesos argentinos. Saco 30 pesos da carteira e entrego a ele, que procura trocados em meio a moedas e notas amassadas. “No es necessário, es para usted”, digo. Ele sorri e agradece. Despeço-me com um “gracias-senõr”.
 
Meu quarto no hotel consiste em uma cama e um banheiro. Há uma televisão, uma cadeira próxima à janela e um espelho preso à parede. Sobre à cama, lençóis limpos e dois travesseiros. A primeira parte da minha missão será passar uma noite aqui e, amanhã, comprar mantimentos para a expedição na montanha.
 
São quatro horas da tarde. Tento compensar o cansaço da viagem com um cochilo, mas não consigo. Minhas pupilas estão minúsculas. Estou impotente para fazer qualquer outro tipo de tarefa. Fecho os olhos, mas só consigo cair num leve estupor. Fico assim até o fim da tarde.
 
A noite amena em Mendoza concede uma atmosfera solene ao hotel quase vazio.  O clima está para uma “loira” bem gelada. No térreo, junto à recepção, o restaurante é composto por cerca de dez mesas de madeira. Três delas estão ocupadas – executivos, engomadinhos, mulheres de salto alto e crianças birrentas.
 
Normalmente não me sinto à vontade em hotéis e lugares formais, mas, como eu já estava aqui, não poderia deixar de aproveitar. Sento-me em uma cadeira e começo a ler as mensagens no meu celular. Na TV, presa à parede, passa alguns noticiários locais – acidentes, assassinatos, prisões, política…
 
A bartender é uma mulher de mais ou menos da minha idade. Espero ela vir até a minha mesa. Enquanto isso, um casal deu uma risada a duas mesas adiante. Volto para o meu celular, vejo que não há nenhuma mensagem. Aceno e a bartender se aproxima. “Una cerveza”, peço empolgado. “Qual?”, questiona ela. Não há muitas opções na prateleira. Garrafas alemãs, americanas, brasileiras e argentinas fazem parte do cardápio. “Humm…”, deslizo o polegar no cardápio procurando uma opção. “Una Budweiser!”, respondo dando um sorriso discreto.
 
A garota volta e me traz na bandeja um copo e uma longneck coberta por um suor gelado. Ela pousa a bandeja sobre a mesa, curva-se diante de mim e enche a taça com o puro malte. Ergo o copo e dou um vasto gole. Sinto o amargo líquido descer pela goela abaixo. Em poucos minutos, a bebida perde rapidamente a frescura e a úmida consistência.
 
Não resisto e peço outra – uma nacional, desta vez. Quilmes? “El sabor del encuentro”, diz o rótulo. Vamos ver se é boa. Uma música se dilui em meio volume no alto-falante preso ao teto. É algo como “the green eyes…yeah the spotlight…shines upon you…” ColdPlay, minha banda favorita.
 
Enquanto beberico minha gelada, corro os olhos para a parede e vejo uma pequena adega com tintos e brancos alcoólicos, feitos para degustar com classe. Mas não adianta querer me convencer que um Cabernet Sauvignon não irá afetar o meu bolso. Por enquanto me submeto de bom grado ao caldo espumante do fino malte. Ok, eu abro o jogo: os preços contrariam o meu orçamento de viagem. Só tenho dinheiro para ir e voltar da expedição, sem regalias ou gastos extras. Também não estou para fazer cena, nem para beber vinho. Quem sabe, na próxima vez.
 
Faço as contas do tempo que me tomaria beber outra cerveja, mas, na verdade, as minhas pálpebras, com ajuda das garrafas anteriores, estão pesadas como chumbo. Sinto-me cansado e exausto. “La cuenta, por favor”. Vou dormir, pois amanhã será um longo dia.
 
“Somos o resultado dos livros que lemos, das viagens que fazemos e das pessoas que amamos.” Airton Ortiz
 
É preciso reconhecer que não será uma tarefa fácil chegar até o meu principal objetivo: Vallecitos, a 2.900 metros de altitude. Serão 80 quilômetros por uma estrada que segue a sudoeste, em direção a pré-cordilheira. Em Vallecitos, os montanhistas têm à disposição vários refúgios com infraestrutura para alimentação, banho e pernoites onde nin-guém, ninguém mesmo, vai embora sem conhecer o Refúgio Mausy, conhecido pelo atendimento excepcional. E foi trocando e-mails com o Mausy, que conheci Peter, meu motorista, um mês antes de ir para Mendoza.
 
Suponho que a essa altura ele esteja em direção ao hotel. Mas enquanto não chega, fico próximo a recepção, inquieto. Às 7h23 uma camionete Isuzu, cinza e tracionada estaciona próximo a entrada do prédio. Dá para ver que dentro do veículo está um senhor olhando firmemente em direção ao que será, talvez, seu único cliente: eu.
 
Ele está vestindo jeans e uma camisa azul, usa um colete vermelho e botas pretas desgastadas. Sua idade é traída por uma cabeça calva e um bigode orgulhoso, sobre o qual uma verruga marca o lado direito do rosto. O homem se aproxima da ampla porta de vidro que abre para a recepção, entra, olha para mim e, de início, não diz nada. Claro, isso me deixou ainda mais curioso. Será que é ele? A imagem que vejo agora nada se parece com o perfil do homem com barba grisalha e amarfanhada, estilo dirigente sindical, de camisa polo bordô e com quatro quilos a mais, que tracei pela internet.
 
Eu, já impaciente, me antecipo: “Peter?”, pergunto com uma entonação amigável. Ele abre um largo sorriso, estende a mão direita e soletra meu nome: “Jo-na-tar!”. Sim, é ele, concluo. Em seguida, partimos.
 
Estou curioso para conhecer Vallecitos, mas o caso hoje é diferente. Diferente em quê? Sabes bem o que quero dizer. Sei que vou sozinho, e nem é bom pensar. Eu poderia ter escolhido fazer uma viagem para França, um país seguro, com turistas almofadinhas, arranha-céus, restaurantes e parques, mas trata-se de um lugar artificial. Quero conhecer cidades latino-americanas, com vista para a Cordilheira dos Andes, para a Patagônia, Machu Picchu, Cataratas do Iguaçu e Chapada Diamantina. De outra forma, como poderia conhecer o país em que vivo? Ou, melhor ainda, este continente?
 
Contudo, não foi tão fácil chegar até aqui. Minha namorada, Rosemeri, foi a primeira a protestar e a se revoltar com a minha viagem para Mendoza. Na opinião dela, alguém que tem a ideia de escalar uma montanha acima dos cinco mil metros deveria ser considerado louco. Ela tentou me persuadir e me alertar: “Você pode morrer ou se perder…”. De certa forma, ela tinha razão. Mas observe as pessoas atravessando a rua, é uma loucura também, talvez tão perigoso quanto escalar uma montanha.
 
As pessoas que conheço não demonstraram muito entusiasmo pelo meu projeto. Em primeiro lugar, existiam dificuldades práticas – como chegar? Foram quase 40 horas de viagem; embarque e desembarque em rodoviárias; horas de espera e paciência, muita paciência. Como se locomover? Onde ficar? Ainda houve o problema de levar a bagagem com os equipamentos. Há! Há! Há! Há! Que escolha! Talvez tivesse me isolado dentro de um quarto de hotel! Isolar-se? Impensável. Há! Deixa esse assunto pra lá.  Vamos nos divertir.
 
Saímos de Mendoza a quase uma hora e, após alguns quilômetros, penetramos num clima mais ameno. Ao meu lado direito, o sol compunha a represa de Potrerillos, que abastece a região de Mendoza. Esse “embalse”, como eles chamam por aqui, é uma imensa barragem de águas azul turquesa. Peter conta que dependendo da época do ano, a tonalidade desse lago muda de cor. “El buena parte del anõ son de color verde”, disse.
 
Avançamos a mais de 70 por hora, e o céu está azul e cintilante. Deixo o vento frio que vem dos Andes soprar na minha orelha direta. É suave e a sensação é ótima. Mas não para Peter, que assoa o nariz e vocifera. Parece estar resfriado. Fecho um pouco a janela do carro, deixando apenas uma pequena fresta. Passo então observar a paisagem apenas através da janela.
 
Um dos pontos de acesso a Vallecitos é Luján de Cuyo, uma província Argentina de 130 mil habitantes. Por ser uma das maiores produtoras de vinho do país, é comum, ao longo do caminho, encontrar plantações de uva. Como se não bastasse, a região é cercada por uma paisagem de tirar o fôlego.
 
Enquanto eu e Peter conversamos, a estrada, antes interminavelmente reta, passa agora junto de quinas de desertos de areia, arbustos espinhosos e tufos amarelos de vegetação. Um grupo de casas marca aproximação em território habitado. Depois de percorrer toda a estrada principal, entramos numa estrada secundária, de terra, que ganha altitude à medida que avançamos. Agora a viagem se torna uma excursão em direção a Vallecitos. Ambos os lados da estrada estão cobertos por uma vegetação rasteira e semidesértica.
 
Vallecitos acolhe todos os anos milhares de forasteiros que chegam para se aventurar e serve de ponto de partida para uma das mecas do alpinismo e do trekking argentino. Cerros como Vallecitos (5.500m), Rincón (5.300m) e Lomas Amarillas (5.100m) são apenas alguns dos picos que atraem os alpinistas.
 
Agora meus olhos turvados pela emoção se detêm a uma única e tão longamente esperada imagem, a inconfundível cabana do Refúgio Mausy, incrustada entre as montanhas andinas. Desço do carro, e com um solavanco vigoroso Peter me ajuda a retirar a mochila do bagageiro e a levá-la até a entrada do Mausy, onde recostada à porta, está Vanessa – uma mulher de cabelos tingidos de loiro, na faixa de 36 anos e responsável pelo refúgio. Ela pergunta se eu preciso de um quarto, respondo que não. Talvez me deleite esta noite com o céu estrelado nas tranquilas pradarias e vales dos Andes.
 
Antes, porém, será preciso superar os flashes de um sol implacável de verão.  Retiro da mochila o protetor solar e aplico uma espessa camada no rosto, braços e pernas. Inevitavelmente, dou agora os primeiros passos para alcançar o acampamento Las Veguitas, aproximadamente 3.200 metros de altitude. A trilha transcorre sempre às margens do Arroyo Blanco, um emaranhado de águas esbranquiçadas que correm velozmente sobre um leito pedregoso até chegar a bacia de Potrerillos. Depois de uma primeira subida, consigo ver quase todas as voltas do córrego.
 
A rota me leva para uma paisagem montanhosa e imponente, de tirar o fôlego. Alguns metros adiante, a trilha dá uma guinada para esquerda, serpenteando por um chão de cascalho graúdo até que, finalmente, me leva ao acampamento Veguitas. O local é composto por uma gramínea que cresce sobre um vale verde e pedregoso, de onde é possível coletar água de várias nascentes e fazer ascensões ao Cerro San Bernardo, a 4.150 metros de altitude, ou avançar para acampamentos superiores, como Piedra Grande, a 3.550 metros. Passarei esta noite aqui, cercado por paredões de montanhas.
 
Leve e sem pressa, deito-me agora sobre meu isolante térmico e aprecio o lugar. Ao norte se encontra Cerro Vallecitos; e ao sul, Cerro el Plata, escondido nos ombros do Cerro Lomas Amarillas. O céu está limpo, quase sem vento, de modo que dá para sentir a tranquilidade do lugar.
 
Eu preciso descansar, mas por quanto tempo? O desejo irreversível de seguir em frente ocupa minha mente impaciente. Ao avançar um pouco sobre as saliências do acampamento, observo três corredores atravessando velozmente a minha frente. Um deles, com não mais do que uns 35 anos, veste camiseta e short de lycra, óculos escuros e uma bandana azul-marinho com listras brancas. Ele, e outros dois homens, correm sobre a trilha pedregosa que conduz morro acima.
 
Armo minha barraca ao redor de uma pirca (cerca de pedras) para me proteger do vento. Tiro então as botas, novinhas, e as deixo ao lado da mochila. Assim que o sol se esconde atrás do cume do Cerro Vallecitos, a temperatura cai abruptamente. Finalmente, anoitece. Do acampamento, se avista as luzes da cidade de Mendoza. A escuridão parece envolver os espaços de uma cidade que dorme e que, pouco a pouco, é inundada por um brilho espectral. Desligo, então, a luz frontal presa à minha cabeça e fico enredado no simples prazer de contemplar o lugar.
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Dias atrás, uma lâmpada nua iluminava o quarto enegrecido e solitário do hotel. Na tevê passava Discovery Channel e NetGeo. E agora aqui, com uma torrada nas mãos e enfiado dentro do meu saco de dormir, observo através do feixe frágil da minha barraca que lá fora faz muito frio, um frio que, para ser sincero, não é tão perturbador assim. Eu mal me lembro da última vez que vi um céu tão claro como este, turbulento e gélido.
 
Uaaaah! O sono e o cansaço me invadem e fica difícil manter-se acordado. Eu me pergunto se meus vizinhos estão tão empolgados quanto eu. Do lado de fora da minha janela, ouço passos que são executados por alpinistas que regressam dos acampamentos superiores. São passos velozes, como se alguém descesse descontroladamente morro abaixo. Isso faz ofuscar qualquer outra vontade de ir lá fora.
 
“Nada é maior do que o prazer de uma nova descoberta.” Waldemar Niclevicz
 
Brrrr… Que frio! Engatinho para fora da barraca e percebo que minha mochila, que ficara exposta ao relento à noite toda, está coberta por uma fina camada de gelo. A água do meu cantil, supostamente liquida, está congelada.  Antes de tomar uma ducha de água fria no rosto que me ajude a despertar, preparo meu café da manhã: bolachas, chocolate e chá de ervas.
 
Me debruço sobre as instruções do próximo destino, impressas numa folha detalhando a logística: seguir à margem direta do Arroyo Blanco, em direção nordeste, por cerca de uma hora até chegar em Piedra Grande, onde farei meu segundo acampamento.
 
Enquanto arrumo a mochila para seguir adiante, fico sabendo numa conversa com um alpinista que aquele grupo de rapazes de ontem eram maratonistas que faziam grosso treinamento para participar de uma ultramaratona. As pessoas que treinam nesta região, vale dizer, a grande maioria estão se preparando para encarar montanhas mais exigentes, como o Aconcágua, a mais alta das Américas, com 6.962 metros de altura. O que não é o meu caso, pois meu objetivo está a 4.300 metros de altitude, em El Salto.
 
O sol implacável da manhã adverte que será um dia difícil, de longa caminhada pelas trilhas. Assim, às saias do desconhecido, despeço-me de Veguitas com um “hasta la vista” e começo a dirigir meus passos para Piedra Grande.  Com três quartos do caminho percorrido, a rota segue por uma trilha que se distancia do Arroyo Blanco. Mais acima, o caminho leva até a base de uma gigantesca rocha, tão grande quanto um carro e marcada por várias placas em homenagem a montanhistas que morreram na tentativa de conquistar as montanhas da região.
 
Ficarei aqui desde que, é claro, tenha espaço no aglomerado de barracas amontoadas próximas umas das outras. O lugar é movimentado, repleto de alpinistas, trekkers e turistas – todos a caminho do acampamento El Salto, ainda três a quatro horas de distância montanha acima.
 
“Um dia é preciso parar de sonhar e, de algum modo, partir.” Amyr Klink
 
São oito horas da manhã e estou a caminho do meu último destino, El Salto. A região recebe esse nome – Salto D’água – por causa de uma cascata que se forma pelas águas do degelo dos Andes e de outras nascentes. Sua base é um imenso mirante, de onde dá para avistar a represa de Potrerillos e a cidade de Mendoza. O local é considerado acampamento base para ascensão aos cerros Plata e Vallecitos.
Cordón del Plata
 
Para chegar lá, será preciso percorrer três horas de trilha batida, pulando obstáculos de enormes blocos rochosos e escorregadio. Por causa desse terreno difícil, à primeira vista, nenhum ser humano adivinharia que ali existe um lugar chamado  “infiernillo”.
 
Enquanto minhas botas mastigam as pedras soltas da trilha, a paisagem vai ficando cada vez mais árida e exuberante. Num determinado momento, uma mula cinzenta e magra desce com dificuldade o estreito caminho. O condutor chicoteia vigorosamente o animal para forçá-lo ir adiante, fazendo o coitado caminhar apavorado. Depois de esperar alguns minutos, reinicio a subida.
 
Estou a vinte metros verticais de Salto D’água. Agora há apenas um obstáculo que me separa do meu objetivo final: uma saliência íngreme de pedras soltas. Procuro não cometer nenhum erro, contudo, embora bem fisicamente, minha preocupação é com dois montanhistas que descem e procuram evitar o declive escorregadio. A salvação, conforme observo, será subir cravando na encosta com a ponta das botas. Após alguns minutos de trabalho arriscado, chego em El Salto, são e salvo.
 
Sento-me agora numa pedra e observo a aldeia feita de casebres de náilon. São umas sete ou oito delas. O lugar impressiona! Dou conta de que escalar as montanhas do Parque Provincial Cordón del Plata não requerem técnicas ortodoxas de alpinismo, mas, por outro lado, exige uma disposição física e disciplinada de buscar objetivos.  No meu caso, uma meta não tão virtuosa: apenas o culto a natureza e a experiência enaltecedora da aventura. 
Texto e fotos: Jonatar Evaristo

2 Comments

  1. André Costa 28/02/2016at10:26

    Muito boa postagem Jonatar, valeu por compartilhar!!

    Algumas perguntas sobre o local:
    – Existe alguma taxa para entrada ou estadia no parque?
    -Foi necessário usar grampons e piolet para a subida desse cerro? Sabe se os outros que citou (Cerros como Vallecitos (5.500m), Rincón (5.300m) e Lomas Amarillas (5.100m)) precisa desse tipo de equipamento?

    Abraços!

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