Aproximação:

Saímos do aeroporto em Curitiba com 13 volumes entre bolsas, mochilas e haulbags (tipo de mochila cilíndrica de rebocar peso na parede) num total de 325 Kg. Chegamos em Caracas com apenas 12. Começávamos bem. O pior foi de Caracas para Ciudad Bolívar, aonde chegamos com 2 caixas de comida a menos. Tivemos de tomar a decisão de seguir sem toda a carga, pois não queríamos perder mais tempo e nem suportávamos a idéia de postergar ainda mais o início da aventura. No Aeroporto de Ciudad Bolívar precisamos de 3 avionetas (Cesnas) para transportar os 7 membros da expedição e toda a bagagem dali até Kamarata, uma aldeia indígena, no coração da Gran Sabana, dentro do Parque Nacional Canaima. A Gran Sabana é o grande planalto onde estão localizados os tepuis. Em Kamarata transferimos todo o conteúdo das 3 avionetas para apenas uma canoa.


A Escalada:

Claro que era uma canoa enorme, conhecida pelo nome de Kuriara, que na verdade é o nome da árvore da qual ela é feita. A “nossa” kuriara tinha12 metros de comprimento e uma tripulação de 4 índios pemons (os nativos daquela região). De tal maneira que ela levava 11 pessoas mais 400 Kg de equipamentos, comida, combustível, entre outros. No primeiro dia, descendo o Rio Akanan, o motor pifou. Foi até sorte, pois acampamos num lugar incrível denominado Campo Carrao, onde há uma pista de pouso e um avião abandonado, além de algumas casas ocupadas por indígenas. Isto tudo resquício da época da mineração de ouro e diamantes, extinta há muitos anos, desde que aquilo tudo virou parque. No outro dia, com um novo motor, alcançamos o rio Carrao e antes do pôr-do-sol começamos a subir o rio Churun, este muito menor, porém, muito mais interessante, pois tínhamos sempre os tepuis como pano de fundo e mais emoção na viagem, pois permanecíamos mais fora da canoa empurrando que sentados. Acampamos numa prainha torcendo para não chover, apesar que até agradeceríamos, pois empurrar a kuriara durante um dia inteiro com o rio seco foi devastador. Chegamos no fim da tarde do terceiro dia de navegação em Isla Raton, que é o último ponto onde chegam as canoas repletas de turistas animados para caminhar uns 40 minutos até o “mirador” e ver a impressionante queda de 979 metros de altura do Salto Angel. É de se pensar que no outro dia descansaríamos, mas a ansiedade de começar logo a escalada nos fez levantar cedo e começar a portear todo o peso para nosso acampamento avançado. Foram dois dias de caminhadas, carregando de 20 a 30 Kg até a “Cueva de los Españoles”, distância que percorríamos em uma hora e meia carregados. A Cova, que nada mais é que um buraco sob uma rocha, é um local insuportável, pois é infestado de pernilongos. Isso foi avisado pelo nosso integrante venezuelano: “Ali hay uma plaga increible!” Por sorte fez uns dias mais frios e aquietou a “plaga”.

Escalando

Para não sermos comidos pelos pernilongos, preferimos iniciar a escalada imediatamente, sem descanso. Saindo da cova já adentramos a Gran Bóveda, que é como um grande sulco no tepui, um buraco gigante, com o salto no seu lado direito. Até a base da via percorremos meia hora de caminhada em terreno cheio de pedras, buracos escondidos na Chiquinho teve a honra de escalar os primeiros metros, subindo por um trecho aonde havia bastante vegetação numa horizontal gigantesca, desviando a parte mais molhada. Ele e o Sérgio montaram uma parada (ponto onde ancoramos a corda fixa e onde iniciamos o próximo trecho de escalada) numa fenda esquisita. Aí tivemos a primeira lição: as paradas iriam ser complicadas de montar e muitas vezes precárias. E o aprendizado não pára por aí. Subo pela corda e os meus dois companheiros me olham e dizem que o próximo trecho é sinistro. Eu, muito ingênuo, ofereço-me para guiá-lo, ao que respondem afirmativamente, é óbvio. Esta foi a segunda lição: não confie nos mais velhos. Subi pelas fendas relativamente secas e me dei conta de que tudo estava solto, os blocos nos quais me pendurava estavam apoiados uns nos outros e as fendas onde colocava as proteções móveis eram entre estes blocos. Passei um teto e achei que ficaria um pouco mais fácil, mas estava molhado. Aí aprendi a terceira lição: todas as cordadas seriam muito expostas, ou seja, com risco de quedas enormes, cheias de pedras soltas ou se não, molhadas. A quarta lição do dia foi a mais profunda: a pedra é muito afiada. Após uma queda de uns10 metros, a corda passou em uma aresta e rompeu a sua capa. A partir daquele dia só escalamos com corda dupla e quando fixávamos cordas, colocávamos protetores nos cantos afiados. Apesar dos contratempos, pudemos progredir bem na primeira investida. Deixamos as cordas fixas no final do dia e voltamos para a nossa cova, onde, obviamente, os pernilongos nos destruíram. No outro dia o mesmo ritual: acordar às 5 da madrugada, tomar um belo café da manhã e partir para a escalada. Como ainda estávamos no acampamento avançado, caminhávamos meia hora para acessar a base da Gran Bóveda, aproveitando a viagem para levar algum peso até a base. A partir daí subíamos (jumareávamos) pelas cordas que havíamos fixado no dia anterior. Nos dois dias seguintes avançamos bem e conseguimos montar uma boa linha de reboque que nos levava até o Campo 2, um pequeno platô no final do oitavo esticão de corda, de um total de 31! vegetação e muita umidade. Isso sem contar o fato de que nos primeiros dias a cachoeira estava “agitada” e arremetia contra nós, seres invasores, sem piedade. Era simplesmente assustador, a grande cortina d’água, um pouco aumentada pelas chuvas, vinha varrendo a base da via para nos atingir e ensopar até a alma. Saíramos do Brasil a 24 de janeiro e dia 1º de fevereiro iniciamos a escalada, sem ter tido nem um dia de descanso.

Cinco de fevereiro amanheceu molhado, como os anteriores, devido à cachoeira estar com um grande volume de água. Nosso plano era entrar de uma vez por todas na parede. No acampamento base avançado só ficaria o Orlei para fazer imagens do chão. Os outros seis componentes da equipe (Edemilson Padilha, Valdesir Machado, José Luiz Hartmann, Sérgio Tartari, Waldemar Niclevicz e Alfredo Rangel) iriam viver as próximas duas semanas no mundo vertical. Nesse dia dividimos a equipe em escaladores e rebocadores. O Valdesir (Val) e o Sérgio deveriam guiar 3 cordadas até o Campo 3, enquanto nós rebocaríamos tudo o que fosse possível até onde pudéssemos. Aí tivemos mais uma lição: estávamos muito pesados! Levávamos 220 litros de água, comida para 20 dias (entre normal e liofilizada), muita corda e muito equipamento. Para terminar a história do ataque à parede faço um resumo: o Val levou uma queda das boas e machucou o pé e a cabeça, por sorte não foi grave, mas conseguiram guiar até o Campo 3. Eu e o Yupi (Alfredo), a parte venezuelana da expedição, tivemos de dormir no Campo 2, pois havia alguns haulbags e um monte de água para rebocar do Campo 1 para o 2, e, posteriormente para o 3. Só no outro dia à noite conseguimos nos juntar ao restante do pessoal, já bem instalados no Campo 3, que sem dúvida, era o melhor acampamento de altura que iríamos encontrar no Salto Angel. Ali havia lugar para 4 pessoas dormirem confortáveis no platô e bons pontos de ancoragem para pendurarmos nossos porta-ledges (as macas que usamos para dormir), e o melhor, era protegido da chuva pela negatividade da parede e a água da cachoeira não nos alcançava – apenas uns respingos à noite.

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Oito de Fevereiro ao nascer do sol, enquanto me tratava de minha crise de abstinência de cafeína, me inteirei das novidades: o Chiquinho (José Luiz) já tinha guiado mais um trecho que tinha um aspecto um pouco melhor, pois a pedra era mais ou menos compacta. Eu havia ficado dois dias de molho devido a um problema no braço, coisa da idade. Mas meus companheiros resolveram grandes problemas para cima do Campo 3, passando por mais sistemas de fendas cheios de pedras soltas onde a progressão se punha bem delicada. Estávamos funcionando muito bem como equipe. Enquanto 2 ou 3 guiavam, os outros organizavam o acampamento, preparavam comida, rebocavam peso parede acima e, algumas vezes, descansavam. E o Waldemar sempre subindo e descendo pelas cordas, empenhando-se ao máximo para registrar as melhores imagens da expedição.

Estávamos quase na metade da via e teríamos algumas cordadas importantes naquele dia; subíamos eu, o Chiquinho e o Yupi. Chegamos sem fôlego à base do enorme negativo, chamado pelos conquistadores de Derribos Arias (Área de Demolição), depois de jumarear (subir pelas cordas com aparelhos ascensores) uns 100 metros. E perdemos de vez o fôlego ao avaliar o que teríamos pela frente- uma seqüência enorme de tetos sobrepostos, cortados por fissuras quebradiças e muitas pedras soltas, para variar um pouco. Já estávamos nos acostumando a negociar com dezenas de blocos soltos, agarras que quebravam e proteções precárias. Depois de um trecho de uns 25 metros que tomou várias horas, meu companheiro montou uma parada, ou seja, achou um lugar onde poderia armar uma ancoragem para que eu fosse até ele limpando a cordada, o que significa subir retirando as proteções que ele havia colocado nas fissuras. Era uma parada tenebrosa, 8 friends (tipo de equipamento móvel que se instala em rachaduras na pedra) numa fissura quebradiça e nós dois pendurados no ar. Pedimos ao Yupi que permanecesse na ancoragem anterior. Naquele dia guiamos duas cordadas super trabalhosas, mas sem maiores problemas além dos habituais e conseguimos vencer metade do negativão. Todavia, ao rapelar para o Campo 3 recebemos uma notícia preocupante: o Orlei, nosso amigo que estava no Acampamento Base Avançado, e era encarregado de tirar fotos da nossa progressão na parede, havia sido levado pelos guarda parques para Canaima, sede do Parque, para prestar esclarecimentos. Pela conversa que tivemos com o Diretor do Parque Nacional Canaima pelo rádio, informaram-nos que deveríamos ter pedido uma autorização para escalar aquela parede. Solicitaram que terminássemos o quanto antes a escalada e nos dirigíssemos a Canaima. Era tudo o que não necessitávamos naquele momento, pois já tínhamos pressão demais sobre os ombros. O problema é que não sabíamos o que iria ocorrer; se levaríamos apenas uma “juntada” pelo equívoco de não ter pedido permissão ou se havia conseqüências mais drásticas. Éramos estrangeiros num país muito parecido com o nosso em relação ao tratamento do turista, que é muitas vezes visto como um invasor e não como alguém que traz riqueza para o país. A partir desse dia nossa escalada foi muito mais tensa, se é que isso fosse possível.

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No outro dia o Sérgio e o Val terminaram o serviço de cruzar a parte mais negativa da parede e quase desembarcaram no Campo 4, o próximo acampamento de altura. Dormimos ansiosos, pois no outro dia nos mudaríamos, ou melhor, levaríamos nossa casa mais para cima.

Dez de fevereiro. Amanheceu um dia magnífico, trazendo bons presságios para nossa empreitada de mudança de platô. Eu e o Chiquinho seguimos adiante com a missão de aportar no Campo 4 e iniciar o reboque da carga. Acho que eram uns 9 haulbags com peso variável entre 30 e 50 Kg cada! A subida pelas cordas passando pelo Derribos Arias só não foi pior porque naquele momento o tempo fechou e não podíamos ver o buraco para baixo, mesmo assim era sinistro! Chegando ao final das cordas fixas meu parceiro pegou “a punta caliente de la cuerda” e guiou até o Campo 4, que, por sua vez, era minúsculo. Uma plataforma que caberia apenas a cozinha. Mas nossa preocupação naquele momento era a de içar os haulbags que estavam 130 metros abaixo. Para isso usávamos uma corda de 160 metros de que dispúnhamos, a passávamos por uma roldana com um sistema de travamento; com o peso do corpo e mais uma pessoa puxando de baixo para cima conseguíamos mover o “malote” uns 50 centímetros por vez. Quando colocamos o primeiro haulbag no platô foi uma alegria e uma tristeza ao mesmo tempo por saber que ainda faltavam oito. No final do dia, com a ajuda de todos, conseguimos trazer toda a carga e montar nossas camas (porta ledges) e cozinhar uma boa janta. Não lembro muito bem, mas acho que era lentilha, arroz e um molho especial para celebrar o grande avanço. A partir daquele ponto (já havíamos escalado 19 cordadas, aproximadamente 670 metros) não havia mais retorno, pois o trecho que tínhamos acabado de ultrapassar era muito negativo para conseguir rapelar. Agora era só pelo cume que sairíamos dali.

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Onze de fevereiro, décimo primeiro dia de escalada. Mais um amanhecer deslumbrante! Engulo o café da manhã e antes de comer a minha arepa (delicioso pão assado na panela que o Yupi sempre preparava) já estou me ajeitando para guiar a próxima cordada. Estou tenso porque olho para cima e o que vejo é de arrepiar: uma fissura toda descomposta, ruim de proteger e negativa. Além disso, pelo croqui (mapa da via) era descrita com graduação 9b exposto e delicado. Traduzindo: levaria muitas horas, faria muita força e passaria muito medo. Dito e feito. Depois o Val subiu e também teve a sua dose de desespero para guiar a cordada de número 21. Neste momento o clima começou a virar, parecia que cairia o mundo, descemos, choveu um pouco, mas já limpou. Porém estávamos preocupados porque a cachoeira começou a aumentar com a chuva dos últimos dias e ainda tínhamos o agravante de que no próximo acampamento era desprotegido, coisa que ainda não havia ocorrido pela negatividade da parede. Outra preocupação a partir do Campo 4 era com o suprimento de comida e de água, pois a via não dava tréguas, nunca conseguíamos progredir mais de 50 metros por dia. E nosso consumo diário era de 2,5 litros de água por pessoa. Isso significava que usávamos 15 litros de água por dia. Então nossas reservas davam para mais uma semana aproximadamente.

Doze de fevereiro. Após uma batalha que tomou boa parte do dia, o Chiquinho botou os pés no Campo 5, que, em meus sonhos era uma mega plataforma, plana, confortável, mas isso só nos meus sonhos. Na realidade o platô era até grande, porém todo irregular, sendo difícil de encontrar um lugar plano para dormir. Outro problema era que não era abrigado da chuva. E naquele dia não foi diferente, mal cheguei já senti os primeiros pingos e comecei imediatamente a enrolar as dezenas de metros de cordas que trazia comigo. Eu havia jumareado por último “limpando” as cordas fixas, ou seja, retirando as cordas que havíamos fixado nos dias anteriores deixando o caminho limpo para trás, de maneira que quando tocássemos o cume não houvesse vestígios de nossa passagem.

Outro fato importante é que no Campo 5 a rota divide-se em duas e teríamos de decidir entre a inexplorada linha dos Espanhóis e a exposta Rainbow Jambaia, a dos Ingleses. Escolhemos a espanhola e fazendo uma horizontal gigante para a esquerda tentamos alcançá-la. Todavia, nosso esforço foi por água abaixo quando nos deparamos com um trecho em que as fendas estavam entupidas de mato. Retornamos tudo e perdemos o dia de trabalho o que deixou o grupo apreensivo, pois nossos suprimentos de água e comida estavam se esgotando. O dia só não foi totalmente perdido porque no final dele, após deliberarmos, decidimos pela conquista de uma variante, ou seja, um trecho aberto pela nossa expedição, à direita do acampamento 5.

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Quatorze de fevereiro. Amanheceu um tempo fechado, chuva e neblina, o Salto Angel incrivelmente grande e uma pequena queda d’água caindo diretamente sobre o acampamento. Acordamos, eu e o meu saco de dormir, completamente encharcados. Teria de me mudar para o chão, pois o porta ledge onde dormia perdera a impermeabilidade. Sob uma lona improvisada, tomando o café da manhã, as perspectivas eram sinistras: continuar a conquista da variante brasileira por um terreno novo e depois entrar nos trechos mais difíceis da via inglesa. O problema maior era que já estávamos com nossos cérebros “cozidos”, pois à medida que se sucederam as cordadas fomos nos desgastando física e também psicologicamente. E no décimo quarto dia de expedição funcionávamos no automático, de maneira que engoli o último trago de café de minha caneca de plástico, olhei para o Val e este me entendeu integralmente. O olhar era de determinação, recheado de anseios de pisar no topo daquele tepui e de admirar o caminho deixado para trás. Em alguns minutos não existia mais lugar para dúvidas; estava na ponta da corda negociando com um diedro magnífico protegido da chuva. E este diedro, que é formação que consiste em dois planos da rocha que formam um ângulo, levou-nos, após 55 metros de uma escalada muito bonita, a uma plataforma onde pude armar uma boa ancoragem. Logo dei segurança para que o Val se juntasse a mim. Estávamos cada vez mais próximos do Salto e o volume da cachoeira era assustador, por sorte a água não nos atingia. O Val pegou a dianteira e seguiu por uma placa de rocha extremamente delicada aonde era muito difícil de encontrar pontos de ancoragem que sustentassem mais que o peso do corpo de uma pessoa. Em alguns momentos teve de lançar mão do uso de cliffs, que são como ganchos que se apoiam em pequenas saliências da pedra. Terminou a cordada com os últimos minutos de luz e demorou um bom tempo para terminar de montar a parada. Quando a ancoragem estava pronta, gritou-me para que eu começasse a escalar, e não sei fiquei feliz ou assustado, pois tudo que não queria era limpar aquele trecho transversal à noite, depois de um longo dia de escalada. Em uma cordada transversal muitas vezes temos de pendular para conseguir progredir e isto significa retirar uma peça de uma fissura e “cair” na próxima. Posso afirmar que não foi nada divertido. Nesses momentos que surge a velha dúvida: “que que eu to fazendo aqui?”. A única alegria daquele dia foi poder jantar bem e saber que no seguinte eu e o Val descansaríamos.

Quinze de fevereiro. Décimo quinto dia de expedição. A chuva persistia, e do Campo 5 não conseguíamos divisar a paisagem exuberante do outro lado do Rio Churun, que no início da expedição nos alentava nos momentos mais tensos da escalada. O Chiquinho e o Sérgio pegaram o “jumar das 7 da manhã” e partiram para mais um dia de trabalho. Lá pelo meio do dia observamos o Sérgio poucos metros acima do ponto em que havíamos parado no dia anterior. Ficamos preocupados com a progressão extremamente lenta, pois sabíamos que o Sérgio é um dos mais competentes e experientes escaladores brasileiros. No final do dia, voltou destruído ao Campo 5 e contou-nos que foi uma das cordadas mais difíceis de sua vida, graduada em A4 e certamente a mais difícil até aquele momento; quase todas proteções que colocara nas ranhuras da rocha não suportariam o peso de uma queda. O Chiquinho, por sua vez, ficara o dia todo sob uma goteira dando segurança e não pensava em subir no dia seguinte.

Escalando

Dezesseis de fevereiro. Não existe coisa pior que dormir sabendo que no outro dia será o primeiro a “arriscar o couro” na ponta da corda. Obviamente minha noite não foi das melhores, pois eu e o Val tínhamos o objetivo de chegar ao cume no décimo sexto dia de escalada. Levantar, fazer as necessidades fisiológicas, tomar café, jumarear mais de 100 metros no vazio, escolher as “armas” que vai carregar e partir pra “briga”, esta é a rotina das grandes paredes. E lá fui eu tentando encontrar a linha da via inglesa e depois a linha da variante francesa. Não encontrando nenhuma das duas decidi abrir uma variante brasileira. Já havíamos feito uma variante que saíra à direita da 24ª, 25ª e 26ª cordadas e agora abríamos uma nova à esquerda do 29º esticão. Subi primeiramente por uma fissura perfeita, depois contornei um teto e escalei cuidadosamente por uma laca solta de mais de 5 metros de extensão. Pedi para o meu parceiro enviar mais algumas peças pela corda auxiliar, pois via uma fissura horizontal onde poderia armar uma parada. Quando cheguei a ela constatei que era podre. Teria de encontrar uma ancoragem sólida imediatamente, pois a corda estava acabando. Subi por uma placa até um ponto onde poderia haver alguma possibilidade de proteção. Fizera um esforço tremendo para alcançar aquele pequeno platô devido ao peso da corda causado pelo atrito do roce da mesma no teto que estava abaixo. O problema é que não havia como proteger e tive de bater uma chapeleta (proteção fixa) para dar segurança para meu parceiro. Olhei para cima e vi o cume muito próximo, mas percebi também que o pedaço que faltava era sinistro. Pensei comigo: será que não vamos ter um “refresco” nem no final, será que vamos chegar hoje ao cume? Meu cérebro era uma tormenta. Mas concentrei-me primeiramente na rotina do presente: puxar a corda para fixar para a próxima cordada, rebocar o haulbag de equipamentos, puxar a corda auxiliar e dar segurança para o Val limpar a cordada, engolir algo de comida e água. Estas manobras sempre demandam muito tempo e já passava da metade do dia quando meu companheiro de escalada iniciou aquela que seria última cordada da via. Valdesir Machado, 1,68 metro de altura, muito mais magro, barbudo, quase 20 dias sem tomar banho, era uma figura medonha. Além disso, naquele dia, estava com um mau humor incrível. Nunca havia visto Val tão nervoso. Com um saca-nut, espécie de ferramenta que usamos para retirar peças da fendas, golpeava furiosamente uma fissura para retirar o barro e ajeitar um espaço para colocar uma proteção móvel. A cada golpe gritava um palavrão. Isto me fez perceber que, na verdade, o prazo de validade do time todo já estava vencendo. E seguiu assim, maldizendo o Jesus Galvez, o John Arran e o Arnaud Petit e a mim também por ter um dia ligado e o convidado para aquele sofrimento. Claro que depois que parava para tomar fôlego ríamos muito, então progredia mais uns metros e recomeçava a ladainha. De repente sumiu no meio da vegetação e me chamou pelo rádio. Na mensagem dizia estar em um lugar onde não tinha como continuar a progressão e nem voltar e que se caísse seria um longo vôo. Sua voz denunciava imensa apreensão e eu fiquei meio sem ter o que lhe aconselhar. Depois de alguns segundos disse-lhe que estava muito nervoso, que respirasse, se acalmasse e aí conseguiria encontrar uma alternativa. O rádio ficou mudo por alguns tenebrosos minutos; foi quando a corda começou lentamente a correr pelas proteções e soube que o Val encontrara alguma solução para o impasse. Quando restavam apenas alguns metros de corda, chamou-me pelo rádio muito emocionado para avisar que estava no cume! Não creio que senti alegria. A palavra que descreveria melhor o que senti é alívio. No final, quando o Val fixou a corda no topo do Auyantepui, ficamos todos aliviados por não ter mais de guiar aquelas cordadas arriscadas, por não ter mais de estar sempre amarrados em algum lugar, por poder andar num lugar plano e amplo depois de duas semanas sem colocar o pé no chão.

Dezessete de fevereiro. Apesar de eu e o Val termos atingido o cume no dia anterior não dormimos lá, para nossa tristeza; tivemos de rapelar até o Campo 5 com o haulbag de equipamentos. Este procedimento se fez necessário porque no décimo sétimo dia da expedição tínhamos uma missão surreal: baixar toda a carga e deixar cair os aproximadamente 800 metros de corda até o chão. Isso para não precisarmos rebocar tudo até o cume e depois ter de rapelar com toda a bagagem. O Chiquinho armou toda a traquitana que funcionou perfeitamente. Baixamos uns 5 haulbags, porta ledges e todas as cordas sobressalentes. Só ficamos com os 300 metros de corda que nos ligavam ao cume da montanha, uns pacotes de comida liofilizada e material de acampamento. E com os últimos raios de sol nos unimos todos no topo úmido do tepui. O céu ainda estava limpo e aproveitei para tirar muitas fotos enquanto meus amigos jumareavam. Foi sorte porque nos dias seguintes o tempo permaneceu fechado, com uma garoa constante.

Dormimos numa bela cova de pedra, protegida da chuva. No outro dia fomos até o rio Kerepakupai, o rio do Salto Angel, para tomar um esperado banho. Fazia frio e tão logo nos banhamos começou a ventar e garoar, mas foi o melhor banho que já tomei em minha vida. Acredito que foi porque fazia quase vinte dias que meu corpo não via água. Voltamos pelo caminho em meio ao labirinto de pedras que parecem as guardiãs do Auyantepui.

O Retorno:

Recuperamos um pouco as energias para no dia seguinte rapelar a montanha por uma via de rapel que está bem à esquerda da Gran Bóveda. O que levamos dezessete dias para subir nos custou apenas um dia para descer. Ainda tivemos fôlego neste mesmo dia para ir até a base da via buscar um pouco da carga; claro que a cachoeira aproveitou para nos dar um banho gelado. Desenrolamos os 800 metros de corda sob constante bombardeio, como se ela estivesse nos expulsando dali, ou apenas nos cumprimentando pela façanha.

Descemos até Isla Raton, onde nos deliciamos com um prato composto de arroz com um tipo de maionese de batatas e frango assado, feito pelos índios Pemons. Nem me lembrei que era vegetariano, foi um fiasco. Durante todo o trajeto, a partir do momento que atingimos o topo do tepui, pensamos que os guarda parques poderiam estar nos esperando, no cume, no final dos rapéis, na cova ouem Isla Raton. Masnão estavam. E no outro dia seguimos para Canaima, em apenas meio dia de barco, porque os rios estavam transbordando devido às fortes chuvas do dias anteriores. Lá chegando também ninguém estava à nossa espera. Assim fomos relaxando um pouco. Já na sede do parque nos informaram que deveríamos ter pedido uma permissão para escalar o Salto Angel. Que todas as atividades de aventura no local requerem esta permissão. Nós não havíamos pedido autorização para escalar porque pensávamos que não era necessário este procedimento, pois pelos vídeos que assistimos e pelo que havíamos pesquisado, nunca foi relatado este fato. O pessoal do parque nos informou que teríamos de ser entrevistados e imediatamente seríamos liberados. Foi curioso, porque um dos guarda parques que nos entrevistaram era o mesmo índio que nos levou de kuriara até a base da via. De qualquer forma, foram simpáticos e fizeram de tudo para que nos sentíssemos bem ali nas suas terras. Apenas cumpriram o que o procedimento burocrático. Coisas de América do Sul.

Escalando

Conclusão:

Escalei o Cerro Torre em 2005, o Fitz Roy em 2006, ambas montanhas míticas da Patagônia Argentina, mas o esforço demandado para escalar o Salto Angel foi incomparável. Desde o início a parede me impressionou psicologicamente e à medida que progredimos absorveu todas as minhas energias. Nunca havia ficado tanto tempo em uma parede, nunca havia escalado algo tão difícil tecnicamente, nem tão exposto. O sucesso da expedição só foi possível devido a um fator: trabalho em equipe. Quando alguém não estava bem, outro imediatamente o substituía nas guiadas. Sempre num clima de solidariedade e amizade. Então, parabéns para todos nós que estivemos juntos nessa mega jornada pelo Mundo Perdido.

Agradecimentos: À Conquista, Território e Snake que são as empresas que me apóiam. À  Edelweiss que forneceu todas as cordas usadas pela expedição. Ao Waldemar Niclevicz por ter tido a idéia, organizado e patrocinado a Expedição ao Salto Angel.  E por último, mas não menos importante, agradeço à minha família que sempre está sofrendo à espera de notícias.

Primeira parte: Escalando a cachoeira Salto Angel – Venezuela

Autorizado a duplicação do post por: Conquista Montanhismo

Texto: Edemilson Padilha

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