Já era tarde quando recebi, pelo skype, o convite de meu amigo Geancarlos para uma pequena travessia. Ele havia comprado uma mochila nova e queria testá-la. Como havia apenas o final de semana para tal, decidimos por caminhar entre três estações ferroviárias de um pequeno trecho do Tronco Principal Sul (TPS). O TPS, em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul, foi entregue em partes, entre os anos de 1963 e 1965. Uniu as cidades de Mafra e Lages em Santa Catarina – daí o nome da linha Mafra-Lages – e foi construída pelo 2º Batalhão Ferroviário do Exército Brasileiro. Esse trecho transportou passageiros até 1978. Por volta de 1970, foi entregue o trecho ligando Lages / SC a Roca Salles / RS, mas este sem o transporte de passageiros. Hoje pela linha, trafegam os cargueiros da ALL, que assumiu como concessionária as linhas do Rio Grande do Sul em 1996. Unido às linhas que vinham de Itapeva, em São Paulo, via Pinhalzinho e Ponta Grossa no Paraná (entregues na primeira metade dos anos 1970), essa linha toda ficou conhecida como Tronco Principal Sul e com isso praticamente toda a antiga ferrovia Itararé-Uruguai da RVPSC (Rede de Viação Paraná – Santa Catarina) acabou por ser desativada.

Feitor Faé – Coronel Salgado

O sol raiou cedo na manhã de sábado. Enquanto terminava de arrumar a mochila, percebi que o dia seria promissor para o trekking. Sai de casa às 6h45 na carona de minha noiva, pegamos o Gean e por volta de 7h30 já estávamos na Estação Feitor Faé. Localizada no município de Vila Flores, vizinho de Veranópolis, a estação foi supostamente inaugurada em 1969. Recentemente, a ALL abriu um alojamento para maquinistas em seu pátio, com a finalidade de reduzir custos, enquanto fechou o de Roca Salles, próximo a Porto Alegre. Apesar de antigo, o prédio está muito bem conservado e situa-se próximo ao encontro da foz dos rios da Prata e do Turvo. Lugar muito bonito! Combinei com minha noiva a carona de volta para o dia seguinte e após algumas fotos, demos início à jornada.

Caminhar em linha férrea é assim: o seu passo não acompanha a distância entre os dormentes. Ora você faz o passo curto, ora você estica a perna e isso torna o progresso um tanto quanto difícil. Alternávamos entre o meio do trilho e a lateral cheia de cascalho. O sol batia forte no juízo quando surgia por entre as nuvens e a cada passo dado, Gean reclamava da regulagem da mochila. Sofreu, mas conseguiu enfim, um ajuste, digamos que perfeito. Ele ainda ficou louco de raiva quando dei minha opinião sobre a marca. E fui sincero em dizer que não gostava e que era uma porcaria! Mas como primeira mochila para iniciante, tá mais do que bom!

Nosso ritmo era lento e pelas marcações de distância ao longo da ferrovia, chegamos a uma média aproximada de três quilômetros por hora. Quando construíram a ferrovia, por padrão distanciaram as estações à aproximadamente 18km umas das outras. Com já havíamos percorrido uns 5km, concluímos que estaríamos na Estação Coronel Salgado, ponto de acampamento, por volta de 16h, afinal ainda teríamos o almoço e a parada na piscina abandonada da 4ª Secção. Conforme íamos progredindo, Gean elogiava a mochila, mas arrependeu-se por comprar um modelo de grande capacidade. O Rio da Prata nos acompanhava com suas águas lamacentas e tumultuadas. O clima abafado e a parca circulação de ar nos fizeram parar para abastecer os cantis. Água no trajeto não era problema, havia chovido bem uns dias atrás e as cascatinhas eram comuns à beira da ferrovia.

Enquanto descansávamos na entrada úmida e arejada de um túnel, demos início à gostosa comilança. Gean estreava seu novo fogareiro também. Combinamos que o fogareiro ficaria por minha conta para aquecer o jantar, mas ele não agüentou e trouxe o seu. Particularmente, não gosto de cozinhar no almoço, prefiro comer um lanche mais simples e rápido. Ele não, se entupiu de miojo! Para a inveja do Cacius e demais, logo após o lanche uma gostosa barra de chocolate foi saboreada; e põe gostosa nisso! Tralhas na mochila, pés no trilho e simbora para a piscina da 4ª Secção. Adentramos no escuro pintado de preto do túnel em U de 790m, eis que não demora muito para ouvirmos, ao longe, o som que parecia ser de um trem. Pensamos: “Justo agora?!”. Não podíamos mais voltar, pois já não avistávamos a entrada do túnel, então procuramos um guarda-vidas e lá ficamos até o trem passar. Foram incríveis 88 vagões e 02 máquinas em longos dez minutos!

Passada a experiência, saímos do túnel e pegamos uma estrada que nos levaria à vila abandonada, mais conhecida como 4ª Secção. Essa vila servia de moradia para os trabalhadores da linha e para o Batalhão do Exército que era a 1ª Cia. de Construção Ferroviária, localizada na 4ª Secção do Rio da Prata. Segundo informações ela foi abandonada no ano de 1971. Nela existiam oito casas, uma escola, um rancho com refeitório e um posto de saúde de emergência. Residiam umas 300 famílias de funcionários e mais uma companhia de soldados, com todos os militares oficiais. A vila possuía tudo que era necessário além das residências, armazém de secos e molhados, farmácia, posto de saúde, posto de combustíveis, cinema, açougue, padaria, almoxarifados para armamento e materiais, garagens, sistema de energia elétrica própria da Cia. gerada por dois robustos motores a diesel e linha de ônibus ligando a 4ª Secção do Rio da Prata até a cidade de Veranópolis diariamente. Infelizmente hoje está totalmente destruída e depredada.

Passar por entre as taperas velhas, tomadas por vegetação dá uma sensação de isolamento, de medo. Parece que você sente que algo está entre elas, o silêncio ganha vida. Entramos no que parecia o posto de saúde, porém mesmo estando abandonado há anos, observamos a marginalidade que tomava conta das paredes. Pixações que conotavam pornografia, religião e racismo nas mais diversas formas e cores. Fiquei impressionado com o raio de destruição que o ser humano pode alcançar. Deixamos a vila de lado e partimos em busca da piscina abandonada. Na época, para aliviar o calor impiedoso dos dias de verão, aproveitou-se a cascata de um rio e os moradores represaram a água que corria pedra abaixo.

 

Quando a vi, saí na corrida tirando mochila das costas e me despindo para um delicioso mergulho, afinal o calor estava insuportável. A piscina estava cheia, porém com o passar do tempo, a força do rio trouxe pedras que se acumularam no fundo em algumas partes. O meio estava limpo e ao testar sua profundidade, toquei os pés no chão, porém tive que descer muito. Após Gean também mergulhar, concluímos que havia aproximadamente uns 4 metros!

Aquele banho foi delicioso, ficamos um bom tempo curtindo o som da cachoeira, a água e recuperamos a energia gasta até então. Enchi meu cantil reserva que ia dobrado na mochila – que invenção! – pois onde acamparíamos não havia fonte alguma. Por um momento pensamos em ficar na vila próxima à piscina, mas não havia local para barracas e a distância a ser percorrida no dia seguinte, seria maior. Simplesmente, não queríamos sair de lá. A preguiça já dominava o corpo e a vontade de prosseguir era mínima. Ainda mais estando onde estávamos! Precisávamos continuar e renovados, percorremos mais alguns poucos quilômetros até avistarmos a Estação Coronel Salgado que foi aberta, possivelmente em 1969.

 

Encontramos um bom ponto para montar as barracas. Gean queria dormir sobre o pátio da estação, mais elevado em relação à ferrovia, porém como minha tenda é túnel, tivemos que dormir ao lado da rampa de acesso ao pátio. Jogamos uma boa conversa fora, preparamos um delicioso jantar, com direito a chocolate na sobremesa e improvisamos uma mesa para o jogo de cartas. Havia muitos mosquitos e todos eram atraídos pela luz das lanternas. Uma solução boa foi acendermos uma fogueira sobre a rampa de concreto do pátio. A fumaça logo os espantou. Durante o jogo de cartas, ouvimos novamente o som de um trem, dessa vez muito mais forte. Ao longe, podíamos observar o farol iluminando a copa das árvores e às 21h30 ele estava ancorando na estação. O maquinista muito gente boa, parou para trocar de pista, pois outro trem estava vindo em sentido contrário. Ficou conosco por alguns minutos, dividimos o chocolate enquanto nos mostrava o interior da locomotiva.

Quando o trem secundário alcançou a estação e sumiu por entre os vales, nos despedimos de Seu Antônio que seguiu seu caminho até Roca Salles. Era hora de deitar, ambos estávamos cansados, mas a caminhada tinha sido excelente!

Coronel Salgado – Jaboticaba

Acordamos cedo e o café foi servido por volta de 6h30. Durante a noite, outros trens passaram pelo acampamento, num total de três. Nenhum parou, mas fizeram muito barulho. Tive uma excelente noite de sono e graças à indicação do amigo Peter Tofte, as noites sobre um isolante em EVA de 1cm já ficavam para trás, afinal estreava meu inflável NeoAir da Therm-a-Rest. Me surpreendi com a qualidade do produto, muito confortável, muito prático, ocupa pouquíssimo volume quando guardado e é fácil de inflar. Após organizar a mochila, Gean percebeu que havia montado a barraca ao lado de um formigueiro gigante. Não sei como ele não percebeu antes de montar a tenda, mas a sorte foi que as habitantes não se rebelaram e não o atacaram. Imagine só a barraca cheia de formigas no meio da noite!

O dia amanheceu meio nublado, a presença do sol era rara e já cogitávamos a possibilidade de uma chuva leve. Tínhamos 18km a percorrer até a Estação Jaboticaba e era preciso manter uma média mínima de 4 km por hora, para chegarmos no ponto de resgate às 13h como combinado, pois Gean tinha um compromisso inadiável.

A manhã foi praticamente sem conversas, o ritmo era pesado e procurávamos manter a concentração para caminhar com segurança sobre as imperfeições da ferrovia. Paramos as 10h30 para um breve descanso e lanche, novamente na entrada de um túnel e ao prosseguirmos, fomos pegos de surpresa por uma vagoneta que vinha a milhão com os faróis apagados. Percebemos sua presença quando ela já estava muito próxima e a reação imediata foi a de pular para a lateral e adivinhem: distendi o músculo da panturrilha.

Passa gelol que passa, coloca uma faixa de compressão improvisada e segue o teu caminho com cuidado. Foi assim que agüentei os quilômetros restantes até a chegada em áreas particulares da Usina Hidrelétrica de Monte Claro. O trilho acompanha uma vasta extensão do reservatório formado pelo represamento das águas. Sabia que logo após a usina, havia o túnel em Y. Fiquei maravilhado em poder chegar lá, afinal faltava muito pouco até a estação, porém já eram 11h30 e ainda tínhamos de percorrer o trecho de 2km até a estação e mais 6km até o ponto de encontro, por estrada de chão. Deveria ter dito a Dai que viesse nos pegar na estação, mas esse detalhe passou batido e o sinal de celular não existia por lá.

Quando saímos do túnel em Y, a animação tomou conta. Vimos que ao lado dos trens estacionados na estação, havia um carro. Gean disse: “Corre que a gente consegue carona”. Ofegante e com dor na perna, fiquei um pouco para trás e deixei que ele se virasse com a carona, afinal me devia o chocolate. Para nossa surpresa, nosso amigo Arthur estava lá. Ele ia em direção à Bento Gonçalves e no caminho resolvera se dirigir à estação para algumas fotos das locomotivas. Sentamos no pátio da estação e lá ficamos, descansando, mandando água garganta abaixo, enquanto Arthur tirava mais fotos.

A Estação Jaboticaba foi inaugurada em 1967 e passou a ser o entroncamento entre a linha Mafra-Lages (Tronco Principal Sul) e o ramal de Bento Gonçalves, bem mais antigo e aberto em 1919, ligando Bento Gonçalves a Carlos Barbosa, na linha Porto Alegre – Caxias do Sul. Um trecho desta ferrovia abandonada, percorri em companhia dos amigos Cacius e Felipe. O trecho de Bento Gonçalves ao Rio das Antas estava pronto desde 1951, mas sem importância estratégica, seguindo para o nada, onde não havia ainda o projetado TPS. Em 1978, havia um trem turístico chamado de Trem da Uva, que fazia o percurso Jaboticaba – Bento Gonçalves, ida e volta. Quando o TPS começou a ser construído, este ramal serviu de apoio.

Combinamos a carona até a Ponte do Rio das Antas (Ponte Ernesto Dornelles), considerada a maior ponte pênsil de arcos paralelos do mundo e assim, poupamos os 6km restantes de estrada de chão. No caminho Arthur pediu que o convidássemos para um próximo trekking, ele também gostava muito do esporte e de se aventurar na natureza, porém não conseguia conciliar a atividade com os amigos. Atualizamos os números nas agendas e Arthur seguiu para seu compromisso, enquanto eu e Gean aguardávamos a chegada da carona tomando uma geladíssima Budweiser.

Fazia tempo que não trilhava com Gean, foi muito gratificante poder dividir o final de semana, um gole d’água, as risadas, a excelente companhia e até o chocolate. Voltamos para casa com o sentimento de dever cumprido, de espírito renovado e a certeza da continuação deste belo trekking. De Jaboticaba até a Estação Santa Tereza, mas aí é outro relato!

As fotos não estão muito boas, pois tirei do meu celular (ambos esqueceram as câmeras) e passei num programa para correção. Algumas não são do dia, pois tirei poucas imagens então resolvi complementar com as que tinha no meu arquivo, para mostrar mais a região.

INFORMAÇÕES TÉCNICAS

O acesso à região é fácil e em caso de emergência, várias famílias de agricultores estão dispersas pelas redondezas da ferrovia;

A travessia não é exigente em termos de terreno e preparo físico. Ela acaba se tornando cansativa em virtude de não haver variação no perfil altimétrico, do grosso cascalho e do espaçamento nos dormentes;

A melhor época para fazê-la é no inverno, que coincide com o período de chuvas, porém há maior circulação de trens. No verão a água é escassa e se for fazê-la é bom deixar para uns dias depois de eventuais chuvas e a passagem dos trens reduz consideravelmente (eles circulam mais à noite);

Aqui vale o equipamento básico do básico. Para acampar, pode-se utilizar bivaque. A região é bem propícia para tal, inclusive pertinho da piscina. Lanterna é indispensável para cruzar os túneis. Neles há riscos de lascas soltas dos trilhos e se você não se ligar, pode se machucar gravemente, com direito à infecção, tétano e por aí vai. Sem falar que se você encontrar um trem dentro do túnel, não saberá para que lado procurar um guarda-vidas.

Bons ventos!

Edver Carraro para Trekking RS

Edição: Marcio Basso

3 Comments

  1. Alexandre Smialoski 11/04/2020at12:09

    Bom dia! Muito bom o relato! Parabéns! Por acaso, tens o tracklog da trilha?
    Obrigado!

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