Minha história com os cânions de Santa Catarina começou em 2014, quando na companhia dos amigos Gean Cenci e Marcelo Casarin, tentei realizar a travessia do Parque Nacional de São Joaquim, de Urubici à Bom Jardim da Serra. O parque é uma unidade de conservação brasileira de proteção integral da natureza, localizado nas regiões serrana e sul do estado de Santa Catarina, com território distribuído pelos municípios de Bom Jardim da Serra, Grão Pará, Lauro Müller, Orleans e Urubici.

Foi criado em 6 de julho de 1961 com o intuito de proteger os remanescentes de matas de araucárias, somando-se à relevância das terras, flora, fauna e belezas naturais, encontradas nos seus 49.300 hectares. De relevo bastante irregular, com altitude variando entre 300m e 1.822m, o parque encampa desde paisagens campestres a grandes furnas e encostas recobertas de mata nativa, com grandes desfiladeiros. As maiores altitudes ficam na região nordeste do parque, sendo que o ápice está no Morro da Igreja, em Urubici, com 1.822m. Atualmente está sob administração do ICMBio – Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade – e fechado para quaisquer atividades de ecoturismo, exceto visitação ao Morro da Igreja, mediante autorização.

Naquele ano, o clima instável combinado com um dos invernos mais quentes e chuvosos da história da região, fez com que abortássemos a atividade. Tentamos até uma pernoite no Cânion Laranjeiras – ponto de fácil acesso a partir da cidade de Bom Jardim da Serra, próximo da conhecida Fazenda Santa Cândida – porém a viração, fenômeno muito comum por lá em que o encontro das massas de ar fria e quente se transforma numa espessa neblina, atrapalhou. Daquele ano para cá tentei esta travessia outras duas vezes, sem sucesso. Era necessário ficar de olho no clima! Dias frios, com temperaturas negativas e pouca previsão de chuvas / neve são os ideais.

Como as atividades no parque estão proibidas, fechamos o grupo para a travessia do Cânion Laranjeiras ao Mirante da Serra do Rio do Rastro: Eu, Gean, Tiago e Julian. Nos dias 16 e 17 de abril, realizamos uma caminhada de entrosamento do grupo – a subida de Monte Claro, em Veranópolis – para nos conhecermos e acertar os detalhes da travessia. Gean não pode comparecer; subi na companhia dos novos e bons amigos, Julian fez belas fotos e aproveitamos demais a beleza da região.

Definimos o feriadão de 21 de abril para uma primeira tentativa, porém ao acompanharmos diariamente a previsão do tempo, vimos que a atividade não seria proveitosa. A segunda tentativa foi marcada para o feriadão de 26 de maio, novamente sem sucesso. Aquele clima abaladiço parecia não querer dar trégua! Tiago – iniciante em travessias maiores e no trekking – impaciente, queria ir a todo custo; ainda não havia saboreado a frustração de tentativas falhas. Combinou a travessia com um grupo de amigos de Carazinho, cidade onde mora, mas acabaram desistindo de última hora.

Já não víamos mais a possibilidade de realizar a travessia com o grupo. Além do clima impiedoso, Julian precisava conciliar sua saída com o trabalho, já estava devendo horas à empresa. A quem sabe esperar ensejo, tudo vem a seu tempo e desejo. Santo Antônio é padroeiro da cidade de Bento Gonçalves, onde Julian reside, venerado pela comunidade nos dias 13 de junho, neste ano, uma segunda-feira. Esta era a oportunidade! Julian poderia ir e nós também! Surpresa boa ao consultar a previsão do tempo: temperaturas negativas, vento predominante oeste, zero chance de chuva!

Ronaldo Coutinho, meteorologista da agência Climaterra da cidade de São Joaquim em Santa Catarina, confirmou a previsão que tanto aspirávamos. Tratamos de organizar as tralhas, acertamos a carona com Julian e partimos com destino à Bom Jardim da Serra no sábado, dia 11 de junho, às 4h depois de um reforçado café da madrugada. Pegamos Tiago em Vacaria, cidade convergente às nossas saídas. Pelo caminho, um misto das brumas matinais e da geada transformava a paisagem pitoresca das planuras dos campos de cima da serra.

Chegamos no mirante da Serra do Rio do Rastro às 11 h da manhã e, enquanto esperávamos a carona de Seu Miguel para a Fazenda Santa Cândida, contemplamos a beleza da serra e organizamos as mochilas. O vento estava implacável, de cortar os ossos! Uma pequena amostra do que teríamos pela frente nos próximos dias. Miguel demorou à chegar. A ida à fazenda foi lenta e cheia de sacolejo em virtude da estrada esburacada e abundante em pedras. A fazenda estava em total solidão, batemos na casa e chamamos, ninguém atendeu. O traslado saiu por R$40,00 cada. Coletamos água, fizemos algumas fotos e demos início à caminhada. Andamos uns 300 m e encontramos Seu Assis à cavalo, caseiro da fazenda, voltando para casa. Trocamos uma ideia e continuamos a empreitada.

A Congelante Travessia do Cânion Laranjeiras ao Cânion do Funil

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Terreno úmido e escorregadio, vegetação cobrindo a bota e o vento frio castigando a cada passo. Coletamos água de um pequeno riacho e em poucos minutos adentramos na borda do Cânion Laranjeiras. A paisagem descortinava-se e exibia as elevadas escarpas rochosas formadoras do cânion. Sentamos à borda de uma pedra quase que em suspensão e fizemos algumas fotos.

Bordejamos pela trilha até o mirante principal de onde tivemos vistas espetaculares da cadeia montanhosa da Serra das Laranjeiras. No mirante notamos a presença de lixo e sinais de fogueira. Sério isso? Em pleno século 21 ainda existem pessoas sem a mínima noção sobre aventura consciente e práticas de mínimo impacto ambiental?

A Congelante Travessia do Cânion Laranjeiras ao Cânion do Funil

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Do Laranjeiras seguimos rumo leste, por uma longa baixada encharcada. Tiago devia estar com medo de sujar ou estragar as botas novas, parou para calçar uma bota de borracha que cobre boa parte da canela. Não queria molhar os pés, mas a má transpiração das outras botas também os encharcava. Gean também usou botas de borracha, ele sim não queria estragar sua Timberland. Vai entender!

Da baixada era necessário transpor uma elevação no sentido sul para alcançar as áreas mais elevadas do circuito. Esta elevação era composta por um emaranhado de mata nebular de difícil passeio, nas partes baixa e média, e uma densa plantação de pinus elliottii, na parte mais alta. Conforme subíamos, vistas de tirar o fôlego! Observamos as longínquas montanhas da Serra do Maruim e do Morro da Igreja, em Urubici (nossa visão cobria as torres do Cindacta 2).

A Congelante Travessia do Cânion Laranjeiras ao Cânion do Funil

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O vento nos repreendia impiedosamente! Mal conseguíamos equilibrar os passos. O sol já nos alertava sobre seu repouso, era hora de procurar um local abrigado para pernoite. Atravessamos o pior charco da travessia, atolávamos até o joelho açoitados pela ventania insana que soprava de oeste com sensação térmica registrada em -18.3ºC. Num capão elevado eu e Gean miramos ao longe uma direção sensata à seguir e um possível local abrigado daquele turbilhão. Rasgamos outro penoso trecho de mata nebular, aclive abaixo, e chegamos em outro pequeno charco tomando o sentido oeste para pouso na base das encostas montanhosas, abrigados do vento.

Descemos para o fundo de um pequeno vale irrigado por um modesto riacho de águas límpidas e montamos as barracas num singelo espaço plano. A noite caiu rapidamente e com ela o frio avassalador. Dividi a barraca com Gean, Julian emprestou a sua, pois minha tenda para duas pessoas estava emprestada e não chegaria em tempo; ele dividiu com Tiago. Coletamos água para a janta e café da manhã, organizamos a bagunça, vesti os agasalhos em pluma de ganso, enchi o isolante térmico e entrei no saco de dormir, também de pluma. Acalentamos aquela noite fria com muita sopa, chá, chocolates e boas risadas. A parceria estava boa demais! Os amigos não se abateram frente àquela situação. Noite bem dormida.

A Congelante Travessia do Cânion Laranjeiras ao Cânion do Funil

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O dia raiou sereno e frio, a temperatura mínima registrada durante a noite foi de -6.2 º C e até então, este era o dia mais frio do ano. As barracas amanheceram com uma fina camada de gelo no sobre-teto. Saboreamos um delicioso e quentinho café a base de sopas, chás, grãos e cereais. Meu cappuccino estava no ponto! O trabalho mais difícil daquela manhã foi lavar a louça com as gélidas águas do regato. Incrível foi ver a água dos cantis congelando! Arrumei a mochila e seguimos a peregrinação.

O vento sussurrava calmo, frio porém. Usei balaclava e agasalho de pluma boa parte da manhã. Numa coxilha mais elevada avistamos a direção a ser seguida, predominantemente sul. Igual ao dia anterior cortamos outro penoso trecho de mata nebular e um longo campo encharcado. Nos deparamos com vários córregos congelados e em poucos minutos estávamos trilhando por uma das mais belas paisagens de toda a travessia! Vistas para as cidades de Orleans, Guatá, Lauro Müller, Tubarão e partes do litoral, incluindo a faixa de areia de algumas praias. O clima estava esplendoroso!

A Congelante Travessia do Cânion Laranjeiras ao Cânion do Funil

A Congelante Travessia do Cânion Laranjeiras ao Cânion do Funil

A Congelante Travessia do Cânion Laranjeiras ao Cânion do Funil

A Congelante Travessia do Cânion Laranjeiras ao Cânion do Funil

Julian entrou em transe ao fotografar uma cascata congelada num cânion próximo enquanto eu e Tiago, bem acomodados sobre um seixo, apreciávamos aquele panorama. Uma profusão de verdes enchia a vista somada àquele firmamento desanuviado: estava no paraíso! Depois de algumas fotos, continuamos por uma trilha de gado muito boa de se andar, batida, seca e longa, finalizando no capão onde paramos para almoçar, situado à base de um cânion que antecede o conhecido Funil. Protegidos do vento, saboreamos um longo e merecido lanche com um magnífico visual. Pensei comigo mesmo: você é um cara sortudo e privilegiado!

A Congelante Travessia do Cânion Laranjeiras ao Cânion do Funil

A Congelante Travessia do Cânion Laranjeiras ao Cânion do Funil

A Congelante Travessia do Cânion Laranjeiras ao Cânion do Funil

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Comi bastante, precisava repor as energias para a árdua subida que nos aguardava. Nada de muita conversa, concentração e fôlego eram os companheiros do momento. Ao alçarmos o topo avistei um bando de quatis procurando comida. Julian foi ao encontro do grupo para fotos e, mesmo sorrateiro, afugentou todos que corriam em desespero para longe dos estranhos invasores. Era possível avistar boa parte do trajeto que havíamos percorrido no dia incluindo o Cânion do Funil. Uma trilha batida percorria a extensão do cânion e passava em meio à outros fios de água, ainda congelados em plena tarde ensolarada. Julian avistou a formação de um arco-íris numa cachoeira que descia do Funil e que ainda estava congelada.

A Congelante Travessia do Cânion Laranjeiras ao Cânion do Funil

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A Congelante Travessia do Cânion Laranjeiras ao Cânion do Funil

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Naquela elevação o sinal de celular era forte, percebi que Gean mudou de expressão e atitude ao ler algumas mensagens. De início não quis comentar o assunto mas antes de descermos para o Funil pedi que me contasse o que estava acontecendo, mencionou que as fortes geadas ameaçavam toda a produção de hortaliças de sua empresa. O frio mostrou as caras em Veranópolis que, por coincidência, também registrou as temperaturas mais baixas do ano até então.

Gean trabalha sozinho, toca o recente negócio próprio por conta, tem ajuda da família mas é o detentor de todo conhecimento de suas culturas hidropônicas. Estava em completo dilema! Continuar a travessia? Retornar para tentar salvar a produção do mês e atender seus clientes? A notícia já havia minado sua animação pelo restante da jornada e mesmo decidindo por continuar, seus pensamentos estariam no negócio e em seus fiéis clientes.

Como ainda havia esperança em salvar a produção, optamos por andar até o curral que fica próximo ao Funil e entramos em contato com Miguel para que viesse nos recolher. A decisão foi triste mas apoiada por todos. Restavam aproximadamente 12km para finalizar a travessia porém seria necessária mais uma pernoite. Com a definição abraçada pelo grupo chegaríamos em casa na noite daquele dia e, com isso, Gean teria tempo de trabalhar em prol de sua carta de clientes, naquele momento muito mais importante do que a caminhada.

Em pouco tempo Miguel chegou, ajeitamos as mochilas e fomos de carona até o Funil. Outro lugar fantástico repleto de formações rochosas indecifráveis. Miguel nos contou muito sobre o cânion, sobre as tentativas de escalada ao Funil e sobre os causos da região. Fizemos algumas fotos e logo estávamos na estrada que leva ao mirante da Serra do Rio do Rastro, empacados e inertes naquele trânsito apinhado de turistas das mais diversas localidades.

A Congelante Travessia do Cânion Laranjeiras ao Cânion do Funil

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Ali mesmo, no meio da rodovia, liberamos seu Miguel, pegamos as mochilas e Julian seguiu na companhia de Gean até o mirante onde havíamos deixado o carro. Eu e Tiago ficamos ali no acostamento trocando de roupa e descansando. Minutos depois carregamos as mochilas e demos início ao retorno todos quietos, sem muita conversa, num mistifório de tristeza, pelo abandono da travessia, e de cansaço.

Em boa parte do caminho parecia que minha cabeça iria explodir de tanta dor, fui descobrir mais tarde que era fome! Paramos para jantar em Vacaria no único restaurante que encontramos aberto no domingo à noite em pleno dia dos namorados. Era simples e desajeitado mas com um atendimento pra lá de especial e uma comida saborosa! Tiago pegou seu carro e seguiu para Carazinho, a despedida foi animada.

Chegamos em Veranópolis às 23h; eu e Julian seguimos para o conforto de nossas casas, Gean virou a noite trabalhando e o resultado foi melhor do que o esperado: apenas 25% de perda na produção! A decisão foi sensata visto que a segunda-feira do dia 13 de junho foi o dia mais frio até então. O retorno antecipado garantiu todo mês de luta e compromisso de Gean. Embora fora dos planos iniciais tudo valeu a pena e superou as expectativas. Gratificante demais estar inserido e ligado àquela natureza exuberante na companhia do grande amigo Gean e na presença marcante dos queridos parceiros de aventura Julian e Tiago. Envolvimento foi a palavra-chave dessa jornada!

Bons ventos!

Texto: Edver Carraro

6 Comments

  1. Mauricio 05/09/2016at23:02

    tem tracklog ou mapa? Obrigado

    Reply
  2. Gualter 28/01/2017at18:10

    Boa tarde moçada. parabéns pelo feito , lugar maravilhoso. A travessia foi feita em parques ou áreas privadas?
    Abraços
    Gualter

    Reply
    1. Luis H. Fritsch 29/01/2017at10:19

      Boa tarde Gualter, a travessia ocorreu em áreas privadas!

      Reply
  3. LIlian 03/01/2018at22:33

    Ola, é possivel chegar ao canions sem um guia?
    obrigada

    Reply
    1. Luis H. Fritsch 04/01/2018at14:23

      sim!

      Reply

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